13/01/17

Cerejas

Nas cerejas havia o aroma da fermentação como em mais nenhum fruto. Apanhadas directamente da árvore, sabiam a enzimas com gosto a sol e este sabor era complementado com o brilho especial da sua pele.
Se comermos cerejas mesmo uma hora depois de serem apanhadas, o seu sabor funde-se com o da sua própria podridão. No dourado ou no vermelho da sua cor há sempre um vislumbre de castanho: a cor na qual irão amolecer e desintegrar-se.
A cereja refresca, não devido à sua pureza - como a maçã - mas por levemente, quase imperceptivelmente, picar a língua com a efervescência da sua fermentação.
Graças ao tamanho reduzido da cereja e à leveza da sua carne e à insubstancialidade da sua pele, o caroço da cereja foi sempre incongruente. Comer a cereja nunca nos preparava bem para o seu caroço. Quando o cuspíamos, parecia ter pouca relação com a carne que o rodeava. Assemelhava-se mais a um precipitado do nosso próprio corpo, um precipitado misteriosamente produzido pelo acto de comer cerejas. Após casa cereja, cuspíamos um dente de cereja.
Os lábios, distintos do resto do rosto, possuem o mesmo brilho das cerejas e a mesma plasticidade. Ambos têm a pele semelhante è pele de um líquido. É uma questão de superfícies capilares. Faz um teste para ver se a nossa memória não nos falha ou se os mortos exageram. Põe uma cereja na boca, não a mordas já, e por um milésimo de segundo repara como a densidade, a suavidade e a resiliência do fruto se equiparam perfeitamente à natureza dos teus lábios que o sustentam.

[ in "Aqui Nos Encontramos", Ed. Civilização ]