29/12/17

TOP 2017

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FILMES
São Jorge 
A Fábrica Do Nada 

CONCERTOS
Mário Laginha e Pedro Burmester 
Camané e Orquestra Metropolitana de Lisboa 

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Das Pequenas Coisas: Júlio Pomar e Pedro Cabrita Reis 
José  de Almada Negreiros 

DISCOS
“Só” Ao Vivo – Jorge Palma
“Camané Canta Marceneiro” - Camané

LIVROS
“Épico de Gilgames” (trad., introd. e notas de Francisco Luís Parreira)
“O Livro das Comunidades” - Maria Gabriela Llansol (reedição)

07/07/17

Com preguiça te amo

Com preguiça te amo
Encostado à porta
A olhar paisagem sem desfecho,
Se nada mais houver entre quarto e Paris a salto
(os anjos são incapazes do adeus)
Seremos mais que mão no peito,
Cada um para seu lado
Entre poema e ombreira
Com persianas por fechar.

A minha cabeça estará aqui ou acolá
Conforme hora ou medicamento,
Atenta aos anjos do mar num cais sonâmbulo.
Cada um com seu barco à vela,
(amor nocturno, como são todos)
Amantes do diabo a preto e branco,
A lavar os dentes enquanto os peixes dormem.
Fala, diz,
Um beijo será açoite na palma da mão.

Nunes da Rocha

(1957)

23/06/17

Tábua I

Aquele que testemunhou o abismo, as fundações da terra,
experiente de caminhos, em tudo era sábio!
Gilgames, que testemunhou o abismo, as fundações da terra,
experiente de caminhos, em tudo era sábio!
Aonde estavam os poderes, foi averiguá-los,
de cada coisa extraiu um ápice de sabedoria.
O que era secreto encarou, o oculto trouxe à luz:
resgatou a memória de antes do Dilúvio.
Extenuado, mas em paz, fez o caminho que não tem fim
e na pedra exarou os seus trabalhos.
Ergueu a muralha de Uruk, a do redil,
e a do sagrado Eanna, puro tesouro.
Sobe a esta muralha: é como lá entraçada;
adverte o parapeito, ninguém poderá imitá-lo;
percorre a escadaria, que é de eras remotas,
e aproxima-te do Enna, casa de Istar:
rei ou homem algum poderão jamais imitá-la.

Épico de Gilgames


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16/06/17

Habito Uma Dor

Não deixes o cuidado de governar o teu coração a essas ternuras parentes do outono do qual retiram a sua placidez e afável agonia. O olho enruga-se precocemente. O sofrimento conhece poucas palavras. Prefere deitar-te sem fardos: sonharás com o amanhã e o teu leito ser-te-á ligeiro, sonharás que a tua casa não tem vidros. Sentir-te-ás impaciente por te unir ao vento que percorre um ano numa noite. Outros cantarão a incorporação melodiosa, as carnes que já só personificam a magia da ampulheta. Condenarás a gratidão que se repete. Mais tarde serás equiparado a um gigante que se desagregou, senhor do impossível...
E no entanto.
Não fizeste senão aumentar o peso da tua noite. Regressaste à pesca nas muralhas, à canícula sem verão. Estás furioso contra o teu amor no centro de um acordo que se assusta. Pensa na casa perfeita que nunca verás erguer-se. Para quando a colheita do abismo? Mas tu furaste os olhos do leão. Julgas ver passar a beleza por cima das lavandas negras...
O que foi que te ergueu, uma vez mais, um pouco mais acima, sem te convencer?
Não há cadeiras puras.


René Char

1907 - 1988

19/05/17

Elogio Da Sombra

Quando os artesãos de antigamente lacavam estes objectos, quando lhes traçavam desenhos com pó de ouro, tinham necessariamente na cabeça a imagem de alguma câmara sombria e visavam portanto, sem dúvida alguma, o efeito a obter sob uma luz indigente; se utilizassem dourados em profusão, podemos supor que teriam em conta a maneira como eles iriam desprender-se na escuridão ambiente, e em que medida iriam reflectir a luz das lâmpadas.

Junichiro Tanizaki

1886 - 1965

05/05/17

Em Particular

Qual o trapo preso à cintura, qual o farrapo mais sórdido
Que não tem um preço?
Para quê menear o corpo, sentir luxúria
Sem uma finalidade?
E assim adorámos-te um pouco
Mais do que a Cristo.

Djuna Barnes

1892 - 1982

14/04/17

Odisseia

"A ti não te está destinado, ó Menelau, vindo de Zeus,
Morrer em Argos criadora de cavalos, nem encontrar o teu fim.
Mas os imortais te mandarão para a Planura Elísia,
No extremo da terra, onde está o louro Radamanto.
Aí se oferece aos homens uma vida fácil.
Não neva, não há grande invernia, nem chuva,
Mas as brisas do Zéfiro sopram sempre ligeiras,
Vindas do Oceano, para refrescar os homens.
Isto porque possuis Helena, e para eles és genro de Zeus".

[ Homero, Odisseia, 4.561-569, em tradução de Maria Helena da Rocha Pereira ]

Maria Helena da Rocha Pereira

1925-2017

24/03/17

O Sino

(...) Acabou por decidir que a obsessão da sua presença seria preferível à obsessão da sua ausência (...) Mas por tardiamente ter descoberto em si o talento para a felicidade, maior o seu desencanto ao verificar que não podia ser feliz nem na companhia do marido, nem longe dele.

Iris Murdoch

1919 - 1999

17/03/17

Mágica

Não há amor ilegítimo.
*
Axioma para os músicos: Os pássaros cantm mal.
Outro axioma para os músicos: Os barcos cantam melhor do que as sereias.
*
Conselhos aos pintores: Para estrangular a natureza, há que ter dedos de fada.
*
Os meus versos são cálculos de evasão
*
Era tão mau actor que chorava de verdade
*
A Poesia sou eu.
*
Fugir do Homem, fugir da Natureza e sentar-me em cima do arco-íris com uma pluma na mão.

Vicente Huidobro

1893 - 1948

03/03/17

Húmus

1 de Maio.

Não só os sentimentos criam palavras, também as palavras criam sentimentos. As palavras formam uma arquitectura de ferro. São a vida quase toda a nossa vida - a razão e a essência desta barafunda. É com palavras que construímos o mundo. É com palavras que os mortos se nos dirigem. É com palavras, que são apenas sons, que tudo edificamos na vida. Mas agora que os valores mudaram, de que nos servem estas palavras? É preciso criar outras, empregar outras, obscuras, terríveis, em carne viva, que traduzem cóleras, o instinto e o espanto.

Raul Brandão

1867 - 1930

24/02/17

S / Título

Oh, como a hipocrisia
seduz, e como se esquece
que em criança se está mais perto
da morte que na velhice

Ébria de sono, a criança
sorve ao menos a ofensa do pires,
mas eu - com quem me amuaria? -
sozinho estou, em todos os caminhos.

Não quero dormir como um peixe
no desmaio fundo das águas,
é-me querida a escolha livre
dos meus cuidados, dores e mágoas.

Óssip Mandelstam

1891 - 1938

20/01/17

Espera

Enquanto dormes
No umbral dos teus sonhos,
Espero e contemplo silenciosamente o teu rosto
Quando a primeira estrela da manhã aparece na tua janela.
Assim, à beira-mar,
O asceta em plena meditação
Olha para o Este...
As suas horas de vigília são passadas em insónia e êxtase,
Enquanto espera a sua imersão
Na primeira luz da manhã.

Com os meus olhos
Beberei o primeiro sorriso
Que floresce nos teus lábios entreabertos
Como uma flor recém-nascida...
Esse é o meu desejo

Rabindranath Tagore

1861 - 1941

13/01/17

Cerejas

Nas cerejas havia o aroma da fermentação como em mais nenhum fruto. Apanhadas directamente da árvore, sabiam a enzimas com gosto a sol e este sabor era complementado com o brilho especial da sua pele.
Se comermos cerejas mesmo uma hora depois de serem apanhadas, o seu sabor funde-se com o da sua própria podridão. No dourado ou no vermelho da sua cor há sempre um vislumbre de castanho: a cor na qual irão amolecer e desintegrar-se.
A cereja refresca, não devido à sua pureza - como a maçã - mas por levemente, quase imperceptivelmente, picar a língua com a efervescência da sua fermentação.
Graças ao tamanho reduzido da cereja e à leveza da sua carne e à insubstancialidade da sua pele, o caroço da cereja foi sempre incongruente. Comer a cereja nunca nos preparava bem para o seu caroço. Quando o cuspíamos, parecia ter pouca relação com a carne que o rodeava. Assemelhava-se mais a um precipitado do nosso próprio corpo, um precipitado misteriosamente produzido pelo acto de comer cerejas. Após casa cereja, cuspíamos um dente de cereja.
Os lábios, distintos do resto do rosto, possuem o mesmo brilho das cerejas e a mesma plasticidade. Ambos têm a pele semelhante è pele de um líquido. É uma questão de superfícies capilares. Faz um teste para ver se a nossa memória não nos falha ou se os mortos exageram. Põe uma cereja na boca, não a mordas já, e por um milésimo de segundo repara como a densidade, a suavidade e a resiliência do fruto se equiparam perfeitamente à natureza dos teus lábios que o sustentam.

[ in "Aqui Nos Encontramos", Ed. Civilização ]

John Berger

1926 - 2017